sábado, 26 de fevereiro de 2011

Dentro de uma mão fechada

A minha mãe pequenina desejava uma agulha para bordar e o meu tio Fortunato deu-lhe dois tostões para que a fosse comprar à venda do China. A agulha custava, afinal, três tostões mas o China perdoou o tostão que faltava e passou-lhe para as mãos pequeninas a agulha embrulhada num papel.
No caminho de regresso, não correu nem saltou. De vez em quando, parava com o coração aos pulos: Abria o papel devagar e depois de confirmar que a agulha continuava lá, voltava a fechá-lo com cuidado. A preocupação com a agulha fez com que abrisse várias vezes o papel, na vereda sombreada de pinheiros, no percurso entre a venda do China e a casa dos meus avós. Já atrás do Palheiro do Ti Simeão, faltava já menos de metade do caminho, voltou a abrir o papel e...a agulha tinha desaparecido.
Com um grito, primeiro silencioso e ainda com esperança, procurou-a entre a faúlha que cobria a vereda e por entre as ervas que a ladeavam. Nada. Voltou atrás, até o sítio onde a tinha visto pela última vez. Procurou, procurou, já toda desfeita em lágrimas, mas a agulha nunca apareceu.
Chegou a casa apenas com o papelinho embrulhado dentro da mão pequenina e um enorme desgosto.
Sempre que volta a contar esta história, a voz da minha mãe carrega um bocadinho desse desgosto, embora se ria com a lembrança. E eu, sempre que a ouço, memorizo dentro de mim a lição de que a demasiada preocupação em manter algo de que gostamos, a angústia causada pelo medo de não a conseguirmos agarrar para sempre, é meio caminho para a perdermos.

domingo, 29 de março de 2009

O bilhete da lotaria

Não sei o que o meu tio teria feito com a lotaria, caso alguma vez a tivesse ganho. Sei que todas as quintas feiras o meu tio ia à cidade de propósito para comprar um bilhete da lotaria. O meu tio barbeava-se, vestia uma roupa de sair, colocava o chapéu cinzento na cabeça e percorria uma vereda durante quase uma hora, até apanhar um horário que o deixava no Campo da Barca. Daí seguia a pé pelas ruas, aposto que olhando para tudo, apreciando e respirando a azáfama citadina. O meu tio cumprimentava as pessoas conhecidas com quem se cruzava com uma mãozada forte. Imagino que às vezes entrava no mercado e às vezes comprava bacalhau numa loja da Fernão de Ornelas e talvez tomasse uma bebida com um conhecido numa tasca e talvez aproveitasse para engraxar os sapatos. E então chegava o momento em que o meu tio entrava na casa de lotarias e comprava o bilhete que tinha sempre o mesmo número. Durante toda a sua vida o meu tio apostou no mesmo número da lotaria e nunca lhe saiu nada.

Os pombos e o velho carvalho

Junto à casa do meu avô havia um velho carvalho. No velho carvalho junto à casa do meu avô pousavam dezenas de pombos. Os pombos que pousavam no velho carvalho junto à casa do meu avô eram livres mas voltavam sempre ao mesmo ramo. O meu avô olhava para o velho carvalho e seguia a vida dos pombos, sabia quem estava em casa e quem não estava, sabia tudo e o que não sabia não queria saber. O meu avô era feliz enquanto olhava para o velho carvalho junto à casa. Esse amor de distância fazia feliz o meu avô.